Dia: 24 de Julho, 2021

Os 27 anos de Scott

Scott acordou em um sobressalto. Ele tremia, seus cabelos gotejavam água fria, os lençóis molhados, frios, gelados. Ele pulou da cama e mirou o tapete branco, mirou, mas não viu os dois cisnes que limpavam as penas e nem a menina acompanhada do avô que agachada colhia água. Ele deu um ou dois passos e caiu, parece que ainda estava sonhando quando se contorceu de dor. Não teve forças para gritar, e mesmo que conseguisse gritar Marian não poderia escutá-lo pois tinha ido dormir na casa de uma amiga, Beatriz, vizinha da Clarinha. Scott conseguiu forças, apoiou-se no criado mudo e levantou para segundo após estar de novo no chão. As dores eram insuportáveis. “São demais os perigos dessa vida, pra quem tem paixão”, essa música era cantada no fundo de sua mente. Subitamente ele se avistou no espelho grande, parece que do outro lado ele estava em pé e feliz. “principalmente quando uma lua chega de repente”. Ele virou-se instintivamente para a janela, mas não viu nada, apenas escuridão. Scott se arrastou para longe do espelho. “e se deixa no céu como esquecida”. Ele gargalhou e repetiu e me deixa no chão como esquecido. Ele suava em bica, o tapete agora tinha uma pequena mancha vermelha. “e se o luar que atua desvairado”. Sua mente estava a ponto de explodir. Ele se lembrou que tinha perfume no armário, se arrastou conseguiu segurar o vidro de Rastro, mas esse caiu e se despedaçou, ele então rolou sobre o perfume derramado, sem se preocupar com os cacos. “vem se unir uma música qualquer” “Maldita música, quem pode estar cantando? E se olhou no espelho, era ele do outro lado que cantava. “aí então, é preciso ter cuidado, porque deve andar perto uma mulher”. Por uma fração de segundo se lembrou de Clarinha. Ele então tento cantar bem alto “deve andar perto uma mulher que é feita, de música luar e sentimento. Parou. A dor era forte, e agora doíam também os cortes do vidro de perfume. Ele desmaiou.

Clarinha acordou de um sobressalto, ela nunca havia acreditado que dias tivessem cor, mas esse tinha e era cor de arco-íris. Ela foi possuída de uma vontade enorme de comprar um presente para Scott, mas estava confusa, pois não haviam se passado nem doze hora que se conheceram. Ela sorriu um sorriso de anjo. Ontem ele viu Scott pela primeira vez, passou então a lembrar do grupo de amigos que a tentavam impressionar, um havia passado na USP, o outro era bonito e convencido, cada um tinha um atrativo diferente. Mas o que a impressionou mesmo foi quando o menino calado  que brincava  quieto com um crucifixo de madeira, pegou o violão velho, pendurou o crucifixo nas tarraxas e começou a dedilhar baixo uma música bonita, ela rockeira  que gostava de Slade e de Humble Pie, nunca tinha prestado atenção em Vinicius, mas ouvido o dedilhar baixinho se aproximou e do nada disse “oi, posso escutar?”. Scott acenou com a cabeça e continuou:

“Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer de tão perfeita

Uma mulher que é como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua”

Ela bateu palmas e perguntou “você é daqui?” ela nem se lembra da resposta pois não tinha interesse em saber. Conversaram por mil anos, que podem ser alguns minutos ou horas, até que Scott sempre sorridente e gentil, pegou em sua mão e disse: “vou te acompanhar até a sua casa”. Eles caminharam por milhares de quilômetros que podem ser uma ou duas quadras. Ele parecia tímido, mas disse: “amanhã faço 27 anos, posso te levar na Shadow?. Ela imediatamente aceitou.

Scott despertou do desmaio, agora pingavam suor e sangue. Do outro lado do espelho ele continua observando, mas agora calado. Ele conseguiu forças para pegar o peso de musculação e atira-lo contra o espelho, não satisfeito pegou o maior pedaço de vidro e segurando gritou; “Eu te mato”.

Clarinha havia comprado um presente lindo, ele certamente iria adorar, ela comprou um terço bonito, pois sabia que ele era cristão, comprara também um novo encordoamento pois a corda ré havia se rompido na última canção. Ela estava tão ansiosa para ver o menino que a cativara, que resolveu entrega-los pessoalmente, na casa dele, pela manhã mesmo. Lá chegando, tendo o porteiro chamado, chamado, chamado: “parece que o interfone dele está quebrado, peque as chaves da irmã dele e pode subir”. 

Ela abriu a porta no exato momento em que Scott cravava o pedaço grande de vidro no coração.

O vírus

I – Coletores e caçados

O ano era 2222, mas eles não sabiam disso. Eram um pequeno grupo isolado na floresta. Naquela noite um deles perguntava insistentemente para Dimitri a razão de algumas pessoas terem deixado o grupo na noite anterior:

_ Dimitri, por que aquelas pessoas foram embora ontem à noite?

Nem mesmo Dimitri sabia direito. Ele se lembrava apenas de uma história em que pessoas idosas deveriam deixar o grupo, pois elas estariam contaminadas por “Ele”. Ninguém lhe explicou quem era “Ele”. O certo é que todas as pessoas que fizessem trinta anos deixavam o grupo e nunca mais eram vistas. Porém nesse momento estava mais preocupado com o tempo, pois o frio reduziu drasticamente a coleta de suprimentos. Hoje não seria diferente, teriam que separar o que foi coletado, distribuir a parte de cada um e se preparar para começar tudo no dia seguinte:

_ Dimitri, eu vi um animal atacando, matando e comendo outro. Por que ele fez isso?

Isso ele sabia. Sempre soube que existem animais carnívoros, alguns chegaram até a atacá-los enquanto coletavam alimentos. Isso foi há muito tempo. Agora eles já têm o domínio do fogo e sempre quando um deles se aproxima é imediatamente repelido. Isso prejudica muito a coleta de alimentos, pois muitos membros da tribo têm que cuidar do fogo e enquanto fazem isso não conseguem recolher alimentos. Dimitri já estava se sentindo velho. Sabia que logo faria a jornada final.

Dimitri ainda esse mês faria vinte e sete anos, era o mais velho da tribo. Hoje ele estava especialmente ansioso pois havia cometido um crime. Ele saiu da floresta pela manhã e perambulou pela floresta de pedra, mesmo sabendo que era proibido ir lá.

II – Solidão e demência

A cada nascer do Sol Vladimir fazia um traço na parede com a sua pequena faca de caçador. Cada vez que ele fazia isso ele amaldiçoava os homens, Ele os culpava por sua má sorte. Sua rotina era sempre a mesma, ele verificava se havia água suficiente, vestia sua roupa especial e caminhava até um dos muitos mercados vazios. Ele sabia que tinha suprimentos para muitos anos, porém não aguentava mais viver isolado. Ele notou que era o único que saia de dia. Nas noites ele escutava barulhos aterradores. Na primeira noite, após ter enterrado a última vítima da peste, ele resolveu olhar pela janela. Lá fora passavam pessoas montadas em animais gigantescos, homens e cavalos com mais de três metros de altura. Na segunda ele não teve coragem, pois a multidão que passava gritava “morte, morte, morte”. Vladimir sabia que iria morrer, mas não seria morto por eles. Essa noite ele colocaria fogo na casa. Antes resolveu deixar mais um registro sobre tudo que sabia.

O ano era 2044. A humanidade estava enfrentando o vigésimo quarto ataque de vírus. Esses vírus vinham cada vez mais forte. Começou aniquilando os velhos e os enfermos, até que quase não restaram mais pessoas nessas condições. No próximo ataque eles vinham mais fortes e levavam sempre os mais velhos. O último deles além de matarem a grande maioria da humanidade, deixou os poucos vivos, loucos. O único que não tinha ficado louco era ele. Ele não tinha explicação para esses seres gigantes com mais de três metros de altura, pois nunca os tinha visto antes, mas isso não importava pois eles não o matariam. Finalmente terminou de registrar a sua história. O vigésimo quarto registro que fizera em hologramas; o último. O próximo passo foi colocá-los a salvo do fogo e morrer.

EPÍLOGO – Terra Arrasada

Dimitri estava com medo, porém excitado, por ter cometido um pecado. Ele se lembrou que saiu floresta pela manhã, entrou na floresta de pedra. Andou sem rumo até parar em frente a uma casa destruída pelo fogo. Ele notou também que aos seus pés havia uma caixa contendo vinte e quatro bolas coloridas. Pegou uma delas, apertou e se assustou com o holograma, pois era algo que não conhecia. Passado o susto apertou a bola novamente e o holograma falou. “No ano de 2020 sofremos a primeira pandemia de Corona Vírus…”

A Bala Perdida

Vocês sabem como é sentir atingir a testa de um homem? Pois essa será a minha sina, a partir do momento que um dedo acionar o gatilho. Quando isso ocorre, é como se viesse uma ordem para eu sair e acertar. Eu nunca havia saído, mas sei de casos de amigas que saíram e acertaram pernas, peitos, vidros postes e carros. Eu sempre entendi que havíamos sido fabricadas para propagar a paz, ou vocês acham que um grupo enorme de baderneiros pode dizer como a sociedade como um todo devem se comportar?

Eu nasci, ou melhor fui fabricada em no ano de 2000. Durante todo esse tempo, eu ficava dentro de caixas. Sempre que havia alguma “bagunça”, eles nos pegavam, eram muitas. 

O curioso é que elas iam mas nunca retornavam. A gente comentava que a vida lá fora deveria ser muito boa, pois nunca uma de nós retornou.

Começamos a fazer bolão, e brincadeiras sobre quais seriam as próximas, era uma festa danada, quase explodíamos. Com o passar de tempo, comecei a achar que havia algo errado, pois todas saiam e eu não, isso foi o fim da minha felicidade.

Passei então a ficar mais quieta, na verdade não era eu que queria ficar assim tão quieta, mas me parece que o material de que sou feita ia se tornando mais rígido e pesado, isso me levava, cada vez mais próximo do fundo. Um dia   cheguei ao fundo supremo, quando não há mais ninguém abaixo de mim, apenas pau e pó.

Passou a copa, passaram as olímpiadas passaram as eleições, e nunca mais ninguém me apareceu, nunca mais por meses. Fiquei sabendo de um tal de convênio entre governos, e eu soube de fonte fidedigna que iria ser enviada para Minas Gerais. Nesse dia tudo mudou, entendi que estaria novamente na fila para a felicidade suprema.

Me lembro da viagem, do traslado para os ônibus, até chegar em um local bastante simpático, estava muito excitada.

Não dava para saber muito, mas andei ouvindo pelos cantos e descobri que ia participar de um jogo de futebol. Parece que foi Deus, pois eu sempre quis ser uma bala de borracha, ainda que dura, mas em um jogo de futebol.

Pois tudo foi belo, assisti um belo jogo de futebol, eu via os movimentos, pelo buraco do cano da arma.

Para mim era a glória, era tudo o que eu sempre me imaginei, uma bala de plástico para trazer a paz. Que bom meu Deus que não era letal.

Acabei de ser acionada, finalmente sai do cano, e acabo de acertar a cabeça de um torcedor, ele caiu, acho que morreu, eu não queria tê-lo matado, apenas dar um susto nele, para isso fui fabricada.

Acabei de saber que ele não morreu, está apenas gravemente ferido, tenho que primeiro agradecer a Deus e depois entender o que é “gravemente”!

O gato – Metáfora sobre as redes sociais

Quando a televisão ainda era coisa de poucos, a gente costumava assisti-la na casa da vizinha, dona Lourdes não se importava e era frequente o dia em que as crianças dormiam no sofá enquanto assistiam os programas, quaisquer que fossem eles. A gente morava na segunda casa um pouco mais acima. Como a gente não tinha televisão, costumávamos nos ‘pendurar na janela’ e ficávamos vendo o movimento da rua.  Creio que foi em um dia desses que tivemos uma das mais antigas surpresas que me lembro. Sei que houve outras, mas nessas eu era muito pequeno para me lembrar. Só sei que o Sr, Alípio era chegado em surpresas.

Foi numa tarde em que estávamos ´janelando’ que nossa primeira televisão chegou. Vimos os dois moços subindo a rua Santa Cruz, passando em frente a nossa janela e desaparecem atrás do bar do ‘Seu Laércio’. Sei que trocamos umas duas ou três palavras, eu minha mãe e minha irmã pequena, dizemos algo sobre a felicidade que alguém teria, pois os moços levavam antenas e uma caixa onde certamente havia um novo televisor. Pois a surpresa veio quando eles voltaram e nos perguntaram onde fica a rua Pedro Bernardo Ramos número 8.  Era a nossa casa, que começava ali na rua Santa Cruz. Logo soubemos que Sr Alípio, meu pai, tinha comprado a tão sonhada TV. 

Me lembro até da marca, era uma Colorado. Imediatamente minha mãe pediu-me para comprar um refrigerante ali no bar e a casa virou uma festa. Eu e meu irmão mais novo fomos em um pé e voltamos no outro, ele adorava ir ao bar do Seu Alércio, que era como o chamava. Instalaram então a TV, foi o começo de uma nova era. Todo o que foi dito até agora, serve para ilustrar que nosso pai gostava muito de fazer surpresas. Um fato curioso é que em pouco tempo nosso gato descobriu que ali embaixo da TV, havia um aparelho que aquecia o ambiente e logo passou a ser o seu local favorito para tirar uma soneca.

Alguns anos mais tarde, já acostumado com as surpresas de Alípio, tivemos um pressentimento quando ele nos chamou para fazer uma visita a uma chácara ali perto do matadouro municipal. Entramos todos no chevrolet 1954, azul e branco e fomos cantando a música do Vigilante Rodoviário. Acho que quem cantava eram apenas eu e meu pai, mas para mim era como se a cidade toda cantasse. “di noite ou di dia, firmi no volante; vai pela rodovia, o bravo vigilan an an an ti…”. Foram cerca de nove quilômetros de viagem, mas a viagem durou mais de meia hora. Meu pai ficava dando voltas, porque sabia que gostávamos de andar de carro e também porque havia marcado mais tarde com o Sr. Vitório, o dono da chácara.

Chegamos e nos separamos em três grupos Os homens foram tratar de negócios, as mulheres, que eram muito religiosas, rezavam para que ‘ se fosse para bem’, que o negócio fosse feito e as crianças saíram correndo pelo mato, sendo que eu logo fui repreendido por pisar nos cafés que secavam no terreiro. Fiquei envergonhado por ter levado bronca de um estranho. Sorte é que ninguém da minha família ouviu. Pensando bem agora esse foi o primeiro dia que o vi. Ele estava deitado embaixo do paiol. Não sei se os santos intrometeram, mas sei que saímos dali donos da chácara, cujo nome era Granja D. Corina, mas não demorou para chamarmos ela de chácara chocha.

A chácara era grande, havia uma casa sede e duas de colonos, havia também um terreiro de café e um paiol logo em frente. Do lado direito da casa havia um pomar com bastante mexericas. Havia também um bambuzal imenso, um pequeno lago que secava no inverno e um pasto onde ficavam algumas vacas e o touro ‘Itanhandu’. Ao fundo tínhamos alguns pinheiros. Havia também a plantação de ervilha que eram vendidas para a CICA e o velho Sapucaí que corria manso na divisa com outras terras. Havia tantas coisas que parecia imensa. Demorou muito tempo para a gente explorá-la e nem deu tempo de subir até a grande pedra que ficava após o pasto. 

Um fato curioso e que só reparei muito tempo depois era que havia um gato deitado embaixo do paiol. Um dia eu resolvi chegar perto por pura curiosidade, mas assim que pisei no terreiro de café ele correu e sumiu no mato. A partir desse dia eu comecei a prestar atenção nele e notei que ele de longe prestava atenção em mim. Ele me observava de longe e sempre que eu me aproximava, ele corria. Comecei a ficar cada vez mais interessado no gato. Eu acordava saía para procurá-lo. raramente o via, mas sabia que ele me seguia por toda parte. Um dia passei a colocar leite e comida embaixo do paiol e ficava de longe observando, mas ele não aparecia. Porém era só me distrair e a comida e o leite desapareciam.

A partir desse dia   sempre levava comida, punha embaixo do paiol e elas desapareciam. Assim ocorreu por muitos anos.  A única coisa que mudou era que agora eu o via ao longe, colocava a comida e afastava até a casa e ele então vinha devagar, sempre com os olhos fixos em mim. Ele chegava comia e corria para o mato. Eu então passei a me afastar cada vez menos, era cerca de um passo por dia. A casa fica cerca de cem metro a frente do paiol, então foram muitos dias nessa rotina. Eu o havia batizado e já o considerava meu. Comecei a fazer planos. Quando finalmente fossemos amigos seria uma festa. Eu certamente o levaria para pescar, brincaria de luta com ele, subiríamos em árvores, correríamos atrás das galinhas, enfim, ele era o meu gato. Quase ia me esquecendo não era um gato, mas sim uma gata, fiquei sabendo disso quando o Pedro Leiteiro me mostrou que as cores dele, ou melhor dela eram preto, branco e castanho. Não sei se vocês sabem que gatos de três cores geralmente são gatas. O nome não foi problema pois eu o batizei de Barrinha, todos os gatos de casa chamavam Barrinha e esse nome servia perfeitamente para a gata.

A gata passou a ser a razão da minha vida. Eu já não colocava apenas alimento. Passei a colocar brinquedos de madeiras, de borracha, bolas, barbantes, latas e muitas outras coisas. Eu as colocava e ficava de longe observando, já não me preocupava em aproximar dela, me bastava saber que ela vinha. Nem reparei que já não havia ninguém na casa. Não havia vacas, bois, pomar. Nada existia e não ser o paiol e uma casa em ruinas, mas eu não me importava. Havia uma neblina que   tampava todo o horizonte, mas eu não me importava. Não reparei também que estava cada dia mais fraco. Me lembro apenas que na última vez ela não correu. Eu nem levava nada, apenas me arrastava por sobre caroços de café velhos e cascas de mexerica. Me lembro que ela não corria, mesmo eu chegando cada vez mais perto. Ela não era mais uma gata. Era uma linda morena vestida de negro, eu cheguei a tocá-la antes de cair. E a última coisa que vi foi seu belo sorriso me dando adeus. 

Conto do Balde Azul

Espero que tenha tempo para terminar a minha história, afirmo isso pois não sei quanto tempo ainda me resta. Mas espero estar morto em breve, peço que me perdoem se não conseguir chegar ao final. Por isso tentarei relatar partes fechadas da minha curta vida, que certamente serão entendidas pelos senhores.

Adianto que a culpa não é do caminhão que me fez em pedaços. Ele ou melhor um deles pois são muitos, gosto muito de um inteiramente branco, de uma limpeza invejável, esse passa com varias pessoas correndo e gritando, mas existem outros, o que passou por cima de mim foi um velho enferrujado, mas como disse no inicio, não foi culpa dele, ele nem deve ter sentido eu passando na sua frente.

Não é também culpa do vento. O vento e eu sempre brincamos, uma brincadeira de sopra e cai. Essa brincadeira era assim, ele soprava bem leve, eu tremia balançava mas não caia. Nessa hora éramos pleno riso . Eu até caçoava dele dizendo tente soprar mais forte da próxima vez.

Nem posso culpar a água, ela começou bem devagarinho, fazia top, top, top, depois mudou para tolop, tolop, tolop, depois para tulp, tulp, tupl, depois para tululp. tululp, gulp gulp, até chegar ao chuá que era muito rápido. Nesse ponto ficava assim gulp, gulp, chuá. bom creio que já disse que não foi culpa da água.

Poderia culpar o cachorro, mas não posso fazer isso, pois tudo o que ele fez foi beber da água, ele bebia. até o tulp, mas depois, tululp, tululp. gulp, gulp, chuá. Até que outro cão viesse e bebesse mais. E nem posso por a culpa no gato, pois esse passava sempre longe de mim.

O fato é que hoje, um cão viu o gato, enquanto bebia, e ao correr atrás dele me derrubou, a água vazou, o vento soprou e o caminhão passou por cima de mim.

Estou agora em pedaços esperando o que vai acontecer. Pela primeira vez noto a cor do céu, é azul tão azul quanto eu era quando cheguei aqui.

Conto que te conto: Um dia feliz!

Uma noite negra, que foi aos poucos se acinzentando, roxeando e avermelhando. Os primeiros raios ainda vermelhos atingiram as gotas de orvalhos redondinhas, verdadeiras lentes que concentraram os raios e algumas até chamuscaram as verdes folhas de relva. Mas a noite tinha sido mansa e todas sobreviveram. Algumas, como as pétalas de girassóis ficaram felizes e se banharam com o orvalho e assim se secaram aos raios que agora eram amarelados. Muitos pássaros se sacudiam enquanto corujas e morcegos se aconchegavam à espera do sono reparador. Uma branca fumaça se elevava a partir de verdes campos. O sabiá laranjeira ensaiava um canto, logo seguido pelo pintassilgo e pelo azulão. O Tiziu que ainda não sabia cantar e que nunca saberia, se atreveu a soltar o seu “tiziu, ti, ti ti, ti”. Na cocheira cavalos se animavam. esperando a refeição que logo seria posta. Porcos, em seu cercado fuçavam a comida de ontem tentando encontrar ainda algo apetitoso enquanto outros chafurdavam no lamaçal. Rãs e sapos brincavam de futebol “foi gol, foi, não foi”. De repente um ser rompe pela porta e passa a perseguir tudo que encontra pela frente. Era Piloto o velho cão perdigueiro que, quase cego, não caçava mais. Porquinhos da índia trituram gramas. Marrecos e patos deslizavam velozes pelo lago ainda frio. As formigas cortadeiras já estavam em sua segunda ou terceira carreira, mas as gramas e matinhos não se importavam, pois havia muito verde. Enfim a vida noturna se findava e a pequena roça quase despertava. Faltava apenas o galo índio, mas esse não falhava nunca. Ele saiu de seu galinheiro, subiu ao monte de lenha úmida e soltou o seu cocoricó. Sinal de que o sol despontou totalmente e agora brilhava majestoso para encontrar a lua que teimava em correr para o Japão. A negra bomba d’água acinzentada pelo tempo logo entrará em ação. Chinelos negros, de palha, caminham lentos enquanto botinas rancheiras partem em busca de novas lenha. O braseiro quase extinto ganha vida e devora cascas secas de laranjas retiradas do defumador; algumas palhas secas também colaboram para o renascimento das chamas vermelhas. Alguns gravetos de espessura diversas e um toco maior são adicionados, e o fogão vermelho ganha vida. A festa começa. Bules, chaleiras e panelas, todas de base negras ou cinzas, se aquecem. Hora da bomba entrar em ação. Uma, duas voltas tiram o ar do cano, a terceira atira porções de água fresca na caixa d’água cinza. Uma, duas, três. “de profundis valsa lenta” e a água sobe pelo cano até sair pelo ladrão. A toalha de chita quadradinha em preto e vermelho cobre a mesa rústica. Pires com melado e broas de milho logo terão a companhia do bule quentinho. Botinas rancheiras que trouxeram a lenha fizeram meia volta e agora entram com baldes de leite fresquinho. Pequenos chinelinhos brigam por bobagem e logo passam correndo para brincarem no terreiro de café vazio. Sabugos de milho se transformam em carrinhos, trenzinhos e aviões. Espigas de milho viram bonecas, vassouras e príncipes. Piloto quase cego participa da brincadeira mordendo o que consegue abocanhar, até ser escorraçado por paus e pedras atirados perto apenas para assustá-lo. A brincadeira logo termina com sujos pijamas sendo trocados por limpos uniformes. Cadeiras e bancos rústicos são arrastados e algumas páginas do livro de oração se movem, para felicidade do Cristo e de Nossa senhora colados na parede ao lado de um retrato de casamento. Xícaras, copos, pratinhos e talheres pobres começaram a se sujar. O café da manhã está na mesa. As coisas sujas, agora limpas, repousam temporariamente em prateleiras suspensas. Uma cuidadosa marmita se aquece ao fogo fraco, enrolada em um cobertor amarelo mesmo sabendo que logo esfriará aos poucos. Chinelinhos repousam no lugar dos tênis Congas, antes brancos, agora amarelados pelo tempo e pela terra da estrada de terra, muitas vezes cruzada a pé. Chapéu marrom, botinas rancheiras e o facão mateiro se preparam para a descida e logo se juntam à marmita e ao lampião apagado e somem pela manhã. Sapatinhos se assentam ao lado do arreio e do chicote de gizo. Pneus levantam poeira e somem pela manhã.
Vassouras comuns, vassouras de bruxa, escovões e espanadores, sendo atacados por Piloto, dançam envoltos em nuvens de poeira. Um, dois, três, “de profundis valsa rápida” ao som de pássaros, animais e até do vento que entra nessa dança. Essa festa fantástica fica cada vez mais longe do branco barco que desliza ligeiro levando, marmita, facão mateiro, botinas rancheiras e a tralha toda. Peixes saltam para verem o que lhes atrapalha o sossego. Remos fortes na parte fundas e varejão nas rasas, levam o barco rio acima. Na casa, a festa acaba e entram em ação enxadas e tesouras de podar que trabalham. Enquanto isso o barco chega à mais longínqua das redes. Frutas e verduras em cestos de palhas, peixes em samburás gigantes e sapatinhos navegam pela tarde. Redes são içadas uma a uma. O barco então retorna ao porto enquanto sapatinhos descem do carro e lampiões são acessos. O Balaio pesado repleto de peixes, marmitas vazias em cobertor amarelo, facão mateiro, botinas rancheiras, chapéu, lampião agora aceso, sapatinhos, enxadas e tesoura de podar retornam a casa. A lua desponta majestosa e corre de encontro ao sol que teima em correr para o Japão. “de profundis valsa quieta”.