O gato – Metáfora sobre as redes sociais

Quando a televisão ainda era coisa de poucos, a gente costumava assisti-la na casa da vizinha, dona Lourdes não se importava e era frequente o dia em que as crianças dormiam no sofá enquanto assistiam os programas, quaisquer que fossem eles. A gente morava na segunda casa um pouco mais acima. Como a gente não tinha televisão, costumávamos nos ‘pendurar na janela’ e ficávamos vendo o movimento da rua.  Creio que foi em um dia desses que tivemos uma das mais antigas surpresas que me lembro. Sei que houve outras, mas nessas eu era muito pequeno para me lembrar. Só sei que o Sr, Alípio era chegado em surpresas.

Foi numa tarde em que estávamos ´janelando’ que nossa primeira televisão chegou. Vimos os dois moços subindo a rua Santa Cruz, passando em frente a nossa janela e desaparecem atrás do bar do ‘Seu Laércio’. Sei que trocamos umas duas ou três palavras, eu minha mãe e minha irmã pequena, dizemos algo sobre a felicidade que alguém teria, pois os moços levavam antenas e uma caixa onde certamente havia um novo televisor. Pois a surpresa veio quando eles voltaram e nos perguntaram onde fica a rua Pedro Bernardo Ramos número 8.  Era a nossa casa, que começava ali na rua Santa Cruz. Logo soubemos que Sr Alípio, meu pai, tinha comprado a tão sonhada TV. 

Me lembro até da marca, era uma Colorado. Imediatamente minha mãe pediu-me para comprar um refrigerante ali no bar e a casa virou uma festa. Eu e meu irmão mais novo fomos em um pé e voltamos no outro, ele adorava ir ao bar do Seu Alércio, que era como o chamava. Instalaram então a TV, foi o começo de uma nova era. Todo o que foi dito até agora, serve para ilustrar que nosso pai gostava muito de fazer surpresas. Um fato curioso é que em pouco tempo nosso gato descobriu que ali embaixo da TV, havia um aparelho que aquecia o ambiente e logo passou a ser o seu local favorito para tirar uma soneca.

Alguns anos mais tarde, já acostumado com as surpresas de Alípio, tivemos um pressentimento quando ele nos chamou para fazer uma visita a uma chácara ali perto do matadouro municipal. Entramos todos no chevrolet 1954, azul e branco e fomos cantando a música do Vigilante Rodoviário. Acho que quem cantava eram apenas eu e meu pai, mas para mim era como se a cidade toda cantasse. “di noite ou di dia, firmi no volante; vai pela rodovia, o bravo vigilan an an an ti…”. Foram cerca de nove quilômetros de viagem, mas a viagem durou mais de meia hora. Meu pai ficava dando voltas, porque sabia que gostávamos de andar de carro e também porque havia marcado mais tarde com o Sr. Vitório, o dono da chácara.

Chegamos e nos separamos em três grupos Os homens foram tratar de negócios, as mulheres, que eram muito religiosas, rezavam para que ‘ se fosse para bem’, que o negócio fosse feito e as crianças saíram correndo pelo mato, sendo que eu logo fui repreendido por pisar nos cafés que secavam no terreiro. Fiquei envergonhado por ter levado bronca de um estranho. Sorte é que ninguém da minha família ouviu. Pensando bem agora esse foi o primeiro dia que o vi. Ele estava deitado embaixo do paiol. Não sei se os santos intrometeram, mas sei que saímos dali donos da chácara, cujo nome era Granja D. Corina, mas não demorou para chamarmos ela de chácara chocha.

A chácara era grande, havia uma casa sede e duas de colonos, havia também um terreiro de café e um paiol logo em frente. Do lado direito da casa havia um pomar com bastante mexericas. Havia também um bambuzal imenso, um pequeno lago que secava no inverno e um pasto onde ficavam algumas vacas e o touro ‘Itanhandu’. Ao fundo tínhamos alguns pinheiros. Havia também a plantação de ervilha que eram vendidas para a CICA e o velho Sapucaí que corria manso na divisa com outras terras. Havia tantas coisas que parecia imensa. Demorou muito tempo para a gente explorá-la e nem deu tempo de subir até a grande pedra que ficava após o pasto. 

Um fato curioso e que só reparei muito tempo depois era que havia um gato deitado embaixo do paiol. Um dia eu resolvi chegar perto por pura curiosidade, mas assim que pisei no terreiro de café ele correu e sumiu no mato. A partir desse dia eu comecei a prestar atenção nele e notei que ele de longe prestava atenção em mim. Ele me observava de longe e sempre que eu me aproximava, ele corria. Comecei a ficar cada vez mais interessado no gato. Eu acordava saía para procurá-lo. raramente o via, mas sabia que ele me seguia por toda parte. Um dia passei a colocar leite e comida embaixo do paiol e ficava de longe observando, mas ele não aparecia. Porém era só me distrair e a comida e o leite desapareciam.

A partir desse dia   sempre levava comida, punha embaixo do paiol e elas desapareciam. Assim ocorreu por muitos anos.  A única coisa que mudou era que agora eu o via ao longe, colocava a comida e afastava até a casa e ele então vinha devagar, sempre com os olhos fixos em mim. Ele chegava comia e corria para o mato. Eu então passei a me afastar cada vez menos, era cerca de um passo por dia. A casa fica cerca de cem metro a frente do paiol, então foram muitos dias nessa rotina. Eu o havia batizado e já o considerava meu. Comecei a fazer planos. Quando finalmente fossemos amigos seria uma festa. Eu certamente o levaria para pescar, brincaria de luta com ele, subiríamos em árvores, correríamos atrás das galinhas, enfim, ele era o meu gato. Quase ia me esquecendo não era um gato, mas sim uma gata, fiquei sabendo disso quando o Pedro Leiteiro me mostrou que as cores dele, ou melhor dela eram preto, branco e castanho. Não sei se vocês sabem que gatos de três cores geralmente são gatas. O nome não foi problema pois eu o batizei de Barrinha, todos os gatos de casa chamavam Barrinha e esse nome servia perfeitamente para a gata.

A gata passou a ser a razão da minha vida. Eu já não colocava apenas alimento. Passei a colocar brinquedos de madeiras, de borracha, bolas, barbantes, latas e muitas outras coisas. Eu as colocava e ficava de longe observando, já não me preocupava em aproximar dela, me bastava saber que ela vinha. Nem reparei que já não havia ninguém na casa. Não havia vacas, bois, pomar. Nada existia e não ser o paiol e uma casa em ruinas, mas eu não me importava. Havia uma neblina que   tampava todo o horizonte, mas eu não me importava. Não reparei também que estava cada dia mais fraco. Me lembro apenas que na última vez ela não correu. Eu nem levava nada, apenas me arrastava por sobre caroços de café velhos e cascas de mexerica. Me lembro que ela não corria, mesmo eu chegando cada vez mais perto. Ela não era mais uma gata. Era uma linda morena vestida de negro, eu cheguei a tocá-la antes de cair. E a última coisa que vi foi seu belo sorriso me dando adeus. 

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