Conto que te conto: Um dia feliz!

Uma noite negra, que foi aos poucos se acinzentando, roxeando e avermelhando. Os primeiros raios ainda vermelhos atingiram as gotas de orvalhos redondinhas, verdadeiras lentes que concentraram os raios e algumas até chamuscaram as verdes folhas de relva. Mas a noite tinha sido mansa e todas sobreviveram. Algumas, como as pétalas de girassóis ficaram felizes e se banharam com o orvalho e assim se secaram aos raios que agora eram amarelados. Muitos pássaros se sacudiam enquanto corujas e morcegos se aconchegavam à espera do sono reparador. Uma branca fumaça se elevava a partir de verdes campos. O sabiá laranjeira ensaiava um canto, logo seguido pelo pintassilgo e pelo azulão. O Tiziu que ainda não sabia cantar e que nunca saberia, se atreveu a soltar o seu “tiziu, ti, ti ti, ti”. Na cocheira cavalos se animavam. esperando a refeição que logo seria posta. Porcos, em seu cercado fuçavam a comida de ontem tentando encontrar ainda algo apetitoso enquanto outros chafurdavam no lamaçal. Rãs e sapos brincavam de futebol “foi gol, foi, não foi”. De repente um ser rompe pela porta e passa a perseguir tudo que encontra pela frente. Era Piloto o velho cão perdigueiro que, quase cego, não caçava mais. Porquinhos da índia trituram gramas. Marrecos e patos deslizavam velozes pelo lago ainda frio. As formigas cortadeiras já estavam em sua segunda ou terceira carreira, mas as gramas e matinhos não se importavam, pois havia muito verde. Enfim a vida noturna se findava e a pequena roça quase despertava. Faltava apenas o galo índio, mas esse não falhava nunca. Ele saiu de seu galinheiro, subiu ao monte de lenha úmida e soltou o seu cocoricó. Sinal de que o sol despontou totalmente e agora brilhava majestoso para encontrar a lua que teimava em correr para o Japão. A negra bomba d’água acinzentada pelo tempo logo entrará em ação. Chinelos negros, de palha, caminham lentos enquanto botinas rancheiras partem em busca de novas lenha. O braseiro quase extinto ganha vida e devora cascas secas de laranjas retiradas do defumador; algumas palhas secas também colaboram para o renascimento das chamas vermelhas. Alguns gravetos de espessura diversas e um toco maior são adicionados, e o fogão vermelho ganha vida. A festa começa. Bules, chaleiras e panelas, todas de base negras ou cinzas, se aquecem. Hora da bomba entrar em ação. Uma, duas voltas tiram o ar do cano, a terceira atira porções de água fresca na caixa d’água cinza. Uma, duas, três. “de profundis valsa lenta” e a água sobe pelo cano até sair pelo ladrão. A toalha de chita quadradinha em preto e vermelho cobre a mesa rústica. Pires com melado e broas de milho logo terão a companhia do bule quentinho. Botinas rancheiras que trouxeram a lenha fizeram meia volta e agora entram com baldes de leite fresquinho. Pequenos chinelinhos brigam por bobagem e logo passam correndo para brincarem no terreiro de café vazio. Sabugos de milho se transformam em carrinhos, trenzinhos e aviões. Espigas de milho viram bonecas, vassouras e príncipes. Piloto quase cego participa da brincadeira mordendo o que consegue abocanhar, até ser escorraçado por paus e pedras atirados perto apenas para assustá-lo. A brincadeira logo termina com sujos pijamas sendo trocados por limpos uniformes. Cadeiras e bancos rústicos são arrastados e algumas páginas do livro de oração se movem, para felicidade do Cristo e de Nossa senhora colados na parede ao lado de um retrato de casamento. Xícaras, copos, pratinhos e talheres pobres começaram a se sujar. O café da manhã está na mesa. As coisas sujas, agora limpas, repousam temporariamente em prateleiras suspensas. Uma cuidadosa marmita se aquece ao fogo fraco, enrolada em um cobertor amarelo mesmo sabendo que logo esfriará aos poucos. Chinelinhos repousam no lugar dos tênis Congas, antes brancos, agora amarelados pelo tempo e pela terra da estrada de terra, muitas vezes cruzada a pé. Chapéu marrom, botinas rancheiras e o facão mateiro se preparam para a descida e logo se juntam à marmita e ao lampião apagado e somem pela manhã. Sapatinhos se assentam ao lado do arreio e do chicote de gizo. Pneus levantam poeira e somem pela manhã.
Vassouras comuns, vassouras de bruxa, escovões e espanadores, sendo atacados por Piloto, dançam envoltos em nuvens de poeira. Um, dois, três, “de profundis valsa rápida” ao som de pássaros, animais e até do vento que entra nessa dança. Essa festa fantástica fica cada vez mais longe do branco barco que desliza ligeiro levando, marmita, facão mateiro, botinas rancheiras e a tralha toda. Peixes saltam para verem o que lhes atrapalha o sossego. Remos fortes na parte fundas e varejão nas rasas, levam o barco rio acima. Na casa, a festa acaba e entram em ação enxadas e tesouras de podar que trabalham. Enquanto isso o barco chega à mais longínqua das redes. Frutas e verduras em cestos de palhas, peixes em samburás gigantes e sapatinhos navegam pela tarde. Redes são içadas uma a uma. O barco então retorna ao porto enquanto sapatinhos descem do carro e lampiões são acessos. O Balaio pesado repleto de peixes, marmitas vazias em cobertor amarelo, facão mateiro, botinas rancheiras, chapéu, lampião agora aceso, sapatinhos, enxadas e tesoura de podar retornam a casa. A lua desponta majestosa e corre de encontro ao sol que teima em correr para o Japão. “de profundis valsa quieta”. 

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