Crônica sem começo e nem fim

Eu não me lembro bem quando o vi pela primeira vez, certamente foi após 1962, pois era uma crítica ao ufanismo corrente no país após a conquista, pelo Brasil, do bicampeonato mundial de futebol. Em sua capa eu via um homem pobre, raquítico e sem camisa, segurando um bem precioso, maravilhoso, indispensável, uma bola de couro. Meu pai adorava futebol, não sei como esse livro foi parar em suas mãos. Um livro que criticava abertamente não só o futebol como esporte, mas também o “oba-oba” que se fazia sobre conquista do nosso segundo mundial.

Eu o abri um dia, li algumas frases e rapidamente o fechei para nunca mais abri-lo, “como alguém pode criticar um esporte tão legal? ”, esse livro se chamava “No país do Circo sem pão”, cuja autoria é de Paulo Rolim de Moura, foi publicado em 1963 (MOURA, Rolim de, 1963). E Segundo a descrição no site estante virtual, onde há apenas um exemplar à venda, é um livro de sociologia. De acordo com o título, estávamos em pior situação que na Roma antiga, pois lá o governo controlava o povo, com a política do “Pão e Circo”, já nós, brasileiros em 1962, éramos controlados apenas com o circo.

Na capa do caderno de esportes do JB em 22/01/83, podemos ler:

 “A necessidade brasileira de esquecer os problemas agudos do país, difíceis de encarar, ou pelo menos de suavizá-los com uma cota de despreocupação e alegria, fez com que o futebol se tornasse a felicidade do povo…”.

Poderíamos nos perguntar nesse momento, mas o que o dia 22/01/83 tem a ver com um livro escrito em 1963?   Antes de avançarmos ao texto de Drummond, retornaremos à 1962 e tomaremos emprestado algumas palavras do soneto de Vinicius de Morais, “O anjo das pernas tortas”, poema publicado naquele ano. Em seu primeiro quarteto, Garrincha, recebe a bola de Didi, dribla dois e para. No segundo, rápido como um “pé-de-vento! ”, dribla mais dois. Esse lance leva uma multidão contrita, Vinicius não usa o termo “arrependida”, “penitente” ou “pesarosa”, prefere “contrita”, não apenas por ser o seu verso decassílabo, mas também em uma alusão ao ato de contrição:

  “Meu Deus, eu me arrependo, de todo coração de todos meus pecados e os detesto, porque  pecando não só mereci as penas que justamente estabelecestes, mas principalmente      porque Vos ofendi a Vós, sumo bem e digno de ser amado sobre todas as coisas. Por isso, proponho firmemente, com a ajuda da vossa graça, não mais pecar e fugir das ocasiões próximas de pecar. Amém. ”. (Autor desconhecido)

 Essa multidão arrependida por um sofrimento pecaminoso, transforma seu sofrimento em um canto de esperança, a esperança no que virá a seguir, o ópio que acamará as angústias, um canto de morte. A reza contrita chega ao anjo que a escuta e a atende. Aquele jogador torto como um “G”, coloca a bola redonda como um “O” na meta   formada por “L”. Garrincha faz o gol que transforma o povo que agora dança de felicidade.

Garrincha morreu no dia 20 de janeiro de 1983 e após dois dias, o JB publica a crônica de Drummond “Mané e o sonho”, onde Garrinha é retratado como o ídolo providencial que viera satisfazer ao mesmo tempo os anseios das massas e dos formadores de opiniões, “responsáveis periódicos”, alusão aos jornais, aqui representando os grandes meios de comunicação de massa, porta vozes dos “figurões”.

Garrincha era o brasileiro que tinha tudo para dar errado, pois “contrariava todos os princípios do jogo”, ele tinha as pernas tortas, e mesmo assim, e talvez até por causa delas tortas, possuía uma capacidade incomum para driblar os adversários. Segundo o cronista poderia ser uma indicação de que o Brasil, mesmo sem o preparo necessário para se tornar um grande país, venceria as suas limitações e chegaríamos ao maior orgulho, deixando para trás os “antigos complexos nacionais? ”

Garrincha, um Macunaíma de carne e osso, inocente e sem o total conhecimento do poder mágico de seus músculos e pés, seria o modelo ideal para seduzir um povo, um herói para o dia-a-dia. Ele não pedia nada, não tinha ambição, não causava problemas, e cujo projeto de vida era o prazer na cama, novos filhos, quatorze deles reconhecidos, no papo de botequim e sem os “valores burgueses da vida”. Apesar de Drummond se afastar dos que acusam, não só os figurões, mas também os torcedores, autoridades civis e torcedores em geral, afirma que “O jogador só vale enquanto joga” e enquanto joga bem, não lhe perdoam nem os problemas pessoais. Ele é “pago” para defender   o povo, de seus problemas sejam particulares e coletivos.

Garrincha era pago e foi um desses infelizes. Drummond aqui deixa claro que garrincha serviu ao poder, que se serviu dele, pois assim como muitos outros não lhes sobra nada após terem cumprido a sua missão, desses muitos heróis que servem ao poder, alguns salvam-se, como por exemplo Pelé, contemporâneo de Garrincha. Ele tornou-se ídolo e obteve sucesso na vida, porém esse tinha “uma estrela na testa”.

Garrinha está morto, mas a sociedade se livra do remorso pelo seu final triste, acreditando que ele mesmo teria se destruído, sem um preparo psicológico e que não atendera aos “apelos de seus amigos e fãs”. Resta-nos a maravilhosas lembranças presente nos filmes dos jogos, ou na música cantada por Moacir Franco, “A balada número sete”, essa nos lembra que “No vídeo tape do sonho, a história gravou”.

“Há um deus que regula o futebol”, zombeteiro, mentiroso e cruel, um deus minúsculo. Que representa os figurões, a quem Garrincha serviu com alegria, zombaria, e sofrimento, esse deus minúsculo, precisará sempre, de alguém que lhe forneça o sonho da vez.

Conclusão:

A crônica de Carlos Drummond de Andrade, mesmo dirigida ao público amante do esporte cuja linguagem é predominantemente coloquial, prima pela linguagem padrão e uso da correção gramatical, padrão usual nos grandes meios de comunicação. Apesar disso é uma crônica cuja densidade e leveza estão bem distribuídas, bem como o uso moderado de adjetivos, e sem palavras difíceis. É certamente uma homenagem ao Garrincha, mas é também uma de reflexão sobre o Brasil e seu sistema de poder. O Garrincha, melhor jogador da copa de 1962, enaltecido no soneto de Vinicius de Moraes, tem a sua vida comparada a do povo brasileiro que, alimentado por sonhos, esquece de seus próprios problemas, para acabar se tornando talvez um sonho, talvez um anjo, mas sempre substituído “pelo “novo fantoche”, o sonho da vez”.